Os Livros de Lohrhaupten
A maioria dos livros da nossa biblioteca histórica, na Ohel Jacob, tem nomes das pessoas a quem naturalmente pertenceram ou das cidades de onde provavelmente foram trazidos. De entre os nomes das cidades, encontram-se locais da Alemanha, Áustria e Polónia, por vezes, nomes de cidades muito pequenas. Cada livro conta a sua história. Vou aqui contar a história de dois destes livros.
Dos livros que já cataloguei até ao momento, existem dois com referência à mencionada cidade, por sinal muito pequena, em Hesse: Lohrhaupten. Este lugar desconhecido situa-se dentro de uma grande floresta (Spessart), situada a cerca de 75 km a Leste de Frankfurt am Main.
No século XIX, a aldeia de Lohrhaupten tinha quase 800 habitantes, dos quais 50 foram judeus. Eram as famílias Ehrlich, Maier, Rosenthal, Stern, e Strauß. Judeus comerciantes ou que tinham pequenas lojas na aldeia – uma situação muito típica para a vida judia nas aldeias da Alemanha nos séculos XVIII e XIX. Como em todas as aldeias alemãs, durante o século XIX, os jovens foram embora para cidades grandes, em busca de um futuro melhor. Em 1924, apenas 20 judeus viviam em Lohrhaupten, mas sempre tiveram a própria sinagoga com uma escola. E lá se vivia uma vida judia completamente normal.
O Cantor da aldeia foi o comerciante Samuel Strauß, que também sabia como abater os animais à maneira judia (Shechitá). Foi também ele que ensinou as crianças. Muitas vezes, as pessoas da aldeia achavam que o cantor seria o rabino, porque os cristãos não conheciam a posição de um cantor judeu que é também líder dos serviços e professor; por isso, de vez em quando, surge a designação “Rabino” Samuel Strauß nas fontes. A sinagoga dessa pequena aldeia tinha também uma associação para cuidados de doentes, enterros e lutos (Chevra Kadisha), que em 1924 tinha 8 membros. É de salientar que, nesta pequena comunidade, os cuidados com os doentes e moribundos foram ainda organizados como nas sinagogas maiores. Possuíam um livro com rezas e textos para os doentes, rezas para os enterros, visita aos túmulos e rezas para outras situações difíceis na vida (S.E. Blogg, Israelitisches Andachtsbuch – Frankfurt: J. Kauffmann, 1893). Este livro foi comprado na livraria A.J. Hoffmann na rua Allerheiligenstrasse 87, em Frankfurt. Sabemos isso porque o livro já tem a etiqueta da livraria. Quem sabe, um dos comerciantes o tenha comprado durante uma viagem. O presidente da comunidade, I. Rosenthal, escreve, no dia 4 de Maio de 1902, neste livro: Propriedade da sinagoga Lohrhaupten (“Eigenthum der Synagogen Gemeinde Lohrhaupten, der Sy. Aelteste Rosenthal, Lohrhaupten den 4. Mai 1902”). E assim foi até 1938.
Hoje em dia, o livro encontra-se na Sala de Museu da Sinagoga Ohel Jacob, junto com um livro de rezas com os Selichot que se cantam antes das Grandes Festas (S. Baer, הסליחות לכל השנה לפי מנחג האשכנזים – Rödelheim: J. Lehrberger, 1884) com a anotação “livro de rezas de Samuel Strauß” (Gebetbuch für Samuel Strauß Lohrhaupten), ou seja, aquele Samuel Strauß que foi o Cantor de Lohrhaupten.
Existe um outro livro de rezas, um Sidur (Heidenheim, Wolf, Sapha Berurah, Rödelheim: J. Lehrberger, 1874). No século XX, já este livro era “velho”; parece que as pessoas acarinhavam muito estes livros antigos, ou então não podiam comprar livros novos naquelas aldeias pequenas. Este livro de rezas pertence a Lina Strauß. Quem foi ela? A mulher de Samuel Strauß? Ou a filha? A letra da sua escrita parece mais de um adulto, por isso, talvez se tratasse da esposa. Então, Samuel e Lina Strauß devem ter estado na Ohel Jacob um dia!
Em 1933, viveram ainda seis famílias judias na aldeia (totalizando 21 pessoas), incluindo Samuel Strauß e talvez Lina. A sinagoga foi vendida em 1935 e na noite de 10 de Novembro de 1938, na noite cristal, não foi destruída, mas as janelas foram quebradas. Depois da guerra, a sinagoga foi usada como armazém e em 1974 foi finalmente demolida. Hoje em dia, estão construídas garagens no seu lugar (ver imagem).
Em 2016, a 23 de Maio, a cidade de Lohrhaupten colocou uma placa comemorativa no edifício do Banco (Sparkasse) perto do lugar onde estava a sinagoga, lembrando o facto desta ter existido na rua Pfaffenhäuser Straße, entre 1885 e 1935 (antes de 1885, os judeus usaram um apartamento). Foi também feita uma exibição sobre a vida judia em Lohrhaupten dessa altura, com a visita de Jacob Tal de Israel, filho dos comerciantes Selma e Bernhard Rosenthal.
Samuel Strauß foi um dos milhões de refugiados que chegaram na década de 40 aqui a Lisboa. Quem sabe, ele terá seguido para França e Espanha? Ele teria visto de trânsito ou terá fugido sem documentação? Terá cruzado a fronteira franco-espanhola, nos Pirinéus, secretamente durante a noite como a maioria? Quanto teria ele pago por essa fuga? As fontes da Web só dizem que ele fugiu talvez para o Brasil ou para a Austrália.
Mas o livro da Chevra Kadisha de Lohrhaupten, com as rezas que tinham dado conforto lá pela aldeia por tantos anos, e o seu livro das rezas com os Selichot, as rezas para perdão, nenhum deles seguiu a bordo de um navio, ficaram aqui em Lisboa, na comunidade Ohel Jacob. Quem sabe… talvez porque terão sido necessários a esta comunidade que tantos refugiados acolheu nos anos 40.
Notícia alemã: Als man im Spessart noch Sabbat feierte (7 Maio 2016)